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A JORNADA DE MARIA RÉGIA:
FALTA O PRATO DO MEU FILHO

Victor Ruffolo desapareceu no dia 02 de abril de 2009 após ser internado no hospital da Lapa.

Por Beatriz Monteiro

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Maria Régia, mãe de Victor Ruffolo

Fonte: Acervo pessoal

      “Ainda vou poder te falar como fui a mãe mais feliz do mundo desde que você nasceu até o dia 02/04/09, onde te abracei e te beijei no leito do hospital.” Essas são algumas das palavras que Maria Régia escreveu para o filho, Victor Ruffolo, desaparecido há 14 anos e, até hoje, ela permanece à procura dele.

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Carta de Maria Régia para seu filho

Fonte: Acervo pessoal

      Descrito pela mãe como um rapaz muito responsável, alegre e carinhoso, Victor perdeu o pai muito jovem, com 5 ou 6 anos. Maria Régia, que ficou viúva com 32 anos, casou-se novamente e teve mais duas filhas. Victor se tornou o único filho homem rodeado pelas 3 irmãs, Denise, Nathalia e Nayara, era muito próximo e carinhoso com cada uma delas e era amado pelos amigos, vizinhos e família. 

       Cantor e radialista, Ruffolo trabalhou em uma Rádio da Igreja da vizinhança de Jaguaré. Depois que foi dispensado do exército, com 18 anos, foi morar com a tia em Jandira, e lá, conseguiu um emprego em uma outra empresa. “Ele estava muito feliz onde trabalhava”, conta Maria Régia.

        Foi na cidade de Jandira que Victor conheceu uma nova igreja, aos poucos foi se engajando no movimento e até se tornou conselheiro de um dos grupos de jovens. Na época, ele recebia dos colegas várias cartinhas que a mãe guarda em um saquinho amarelo junto com outros objetos do filho, incluindo uma escova de dentes amarela. Ele era tão engajado com o grupo que fez um jejum a base de refrigerante como uma forma de penitência, não ingeria outro alimento nem água, só bebia refrigerante. Este, dentre outros fatores, fazia Maria Régia suspeitar de algo estranho nessa igreja.

      No fim de Março de 2009, Victor foi para um retiro junto com os colegas do grupo de jovens, mas não sabia aonde seria, e nem teria descoberto, já que as janelas do ônibus estavam fechadas com uma cortina preta justamente para ninguém ver o caminho que seguiram. Depois do retiro, Victor voltou diferente, ele falava sobre a religião constantemente, “Ele começou a falar algumas coisas. Um surto de igreja. Alguém tava vindo, alguém ia chegar”. No dia 31 de março, às 8 da manhã, pediu para sair do trabalho pois estava passando muito mal. Victor andou cerca de 20 km a pé, da cidade de Jandira até Jaguaré, para pedir ajuda à sua mãe, “Tava um calor de 34º nesse dia, e o Victor veio a pé”.

      Victor chegou ao meio dia, havia apenas um pastel para almoçar. Ele estava agitado, mas conseguiu comer o pastel. Os pés estavam cheios de bolhas como resultado da longa caminhada. “Lavei o pezinho dele com água de sal pra ver se melhorava. Ele estourou a bolha quando tirou o sapato”, relata a mãe.

      Maria decidiu levar o filho para o hospital de Pirituba. Na época, fazia um bico trabalhando em festas num Buffet, ligou para a chefe abrindo mão de seis plantões para levar o filho ao médico. Lá, foi examinado por uma doutora, “ela deu o atestado de cinco dias e uma receita com Haldol e Fenergan - remédios com efeito sedativo.” Sob efeito dos remédios, Victor passou bem a noite e a manhã do dia 01 de abril de 2009, no entanto, quando o relógio bateu meio dia, ele mudou completamente e voltou a ficar estranho e agitado “Ninguém o segurava mais, ele já estava tirando a roupa” recorda Maria. 

     A família decidiu que seria melhor chamar o SAMU para transportar Victor até o hospital de Pirituba. Como ele estava agitado, sedaram-no e o puseram numa maca. Não havendo vagas no hospital, transportaram Victor para o Hospital da Lapa. Uma médica turca, que prestou o atendimento, disse que não seriam permitidos acompanhantes e pediu para Maria levar o chinelo do filho para casa.

O chinelo do meu filho foi embora - Maria Régia, mãe de Victor Ruffolo
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      Mesmo não podendo acompanhar o filho, Maria Régia insistiu para saber aonde ele ficaria. “Eu entrei lá e eu vi. Era um quarto que tinha quatro leitos, só”. Colocaram Victor, ainda sedado, no leito 02, leito que permanece na memória e nos sonhos de Maria. “Até hoje eu sonho com esse leito”, relata.  

     Como ele estava sedado, a médica pediu para que voltassem no dia seguinte trazendo roupas, toalhas, escova e pasta dentes, com a promessa de que seria atendida pelo Dr. Merval, nome que nunca mais saiu da cabeça da mãe.

     Às 8 horas da manhã do dia 02 de abril de 2009, Maria Régia já estava no hospital com as coisas do filho aguardando ser chamada. Quando finalmente o médico disse seu nome, Maria foi até a sala com a expectativa de descobrir o que estava acontecendo com Victor, mas recebeu outra notícia, uma notícia que afetaria toda a vida dela: “A senhora tem que esperar um pouco mais, porque seu filho não está mais aqui no hospital.”

    Num primeiro momento, ela havia entendido que o filho havia sido transferido de hospital, mas logo o médico lhe explicou que não, “seu filho desapareceu do hospital.” 

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Fotos de Victor e sua família

Fonte: Acervo pessoal

      Indignada pela situação, Maria agrediu uma enfermeira puxando-a pelos cabelos, foi a primeira vez que foi presa. Algemada, ela foi levada para um camburão - na época eles ficavam próximos dos hospitais e pronto socorros - acompanhada do médico que pediu para que a soltasse justificando que havia sido um ato de desespero “ela acabou de saber que o filho desapareceu.”, no fim, Maria descobriu que o médico só precisava dela para realizar um boletim de ocorrência.

    Ninguém do hospital soube informar como Victor saiu de lá, as câmeras de segurança não estavam funcionando e não havia pistas. “Ninguém sabe por onde saiu meu filho”. Maria foi para a Delegacia 91 realizar o Boletim de Ocorrência, mas não tinha internet no prédio, então pediram para ela ir à lotérica mais próxima realizar o boletim eletrônico. 

       Na mesma delegacia em que tentou fazer o B.O., Maria Régia foi em busca de informações a respeito da investigação. Para sua surpresa, não havia progresso e descobriu que os policiais não estavam fazendo o trabalho de busca fora do escritório. Para tentar ajudar, a mãe contou ao policial uma suspeita que tinha: que o filho havia sido vítima do tráfico de órgãos. “O policial me olhou e falou: a senhora tem provas do que está falando?” Maria não tinha nada além da suspeita de uma mãe que não possuía nenhuma notícia do paradeiro do filho. Foi a segunda vez que foi presa.

      Enquanto os amigos e a família tentavam juntar R$1000,00, que era o valor da fiança, Maria ficou presa na delegacia passando por uma espécie de “advertência por questionar o trabalho dos policiais.” Depois que conseguiram o dinheiro, ela foi solta e não há nenhum registro da sua prisão.

       Ser presa duas vezes não foi a única dificuldade que Maria passou na procura de Victor. Ela teve que trancar a faculdade de Direito, na qual já estava no quinto semestre, e abandonar o estágio em um escritório de advocacia. Ela saía pelas ruas à procura de Victor, imprimiu milhares de cartazes na papelaria para colar nos postes durante a madrugada “Até um tempo atrás eu estava pagando dívidas na papelaria.” comenta.

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Fotos de Victor e sua família

Fonte: Acervo pessoal

        Ela também foi chamada para ir até o IML fazer reconhecimento de corpos com as características de seu filho. Maria descreve o ambiente dizendo que o cheiro era horrível e que havia ambulâncias próximas preparadas para socorrer outras mães que entravam e acabavam desmaiando ao verem os corpos. A cada vez que era chamada para reconhecer um corpo, Maria sentia uma dor imensa e um misto de emoções. Ouça o relato:

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Uma dor imensa - Maria Régia, mãe de Victor Ruffolo
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       Maria também fingia estar em situação de rua para visitar abrigos esperando que Victor aparecesse. Saía pelas ruas perguntando pelo filho, levantava os cobertores de pessoas em situação de rua para ver os rostos, puxava pelo braço quando via alguém parecido com Victor. Ela acabou sofrendo agressões físicas na rua “Eles pensavam que eu estava tentando pegar o território deles”. Mesmo assim, Maria Régia não desistia. Ela entrou em uma perua que transportava pessoas em situação de rua e acabou parando em Sorocaba. Lá, dormiu embaixo de um banco de praça. “Eu apanhei lá também”, conta. 

        Por essas e outras desventuras que as filhas passaram a proibir a mãe de fazer buscas nas ruas, “Ela tava muito exposta, ela saia pra rua com a força de descobrir e voltar pra casa com resposta. Mas tinha gente que reagia com agressão, então não dava pra continuar tanto na rua.”, conta Nathália, uma das irmãs mais novas de Victor.

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       Nathália estava no início de uma gravidez quando o irmão desapareceu, eles eram tão próximos que ela queria dar a notícia primeiro para ele, mas não conseguiu. “Quando tudo aconteceu eu fiquei pensando, se eu tivesse dado a notícia pra ele, que ele seria tio, será que teria mudado alguma coisa? Será que ajudaria ele não ter tido o surto? Será que ele teria ficado em casa pra me ajudar porque ele saberia que meu pai ia brigar comigo? É tudo ‘e se?’, é tudo ‘será?’”.

Victor e Nathália

Fonte: Acervo pessoal

        A família também recebeu muitos trotes ao longo dos anos, de pessoas que diziam ter visto o Victor em outras cidades, na rua, em ônibus. O pior deles foi uma ligação na qual pediram oito mil reais como resgate. “No final de tudo, a gente descobriu que a ligação veio de uma cadeia em Limeira.” conta Nathália. 

      Muitas famílias de desaparecidos acabam sofrendo trotes e golpes como esse, "nós começamos a orientar aos familiares a não colocar mais o telefone pessoal nos cartazes de desaparecimento, mas colocar o de serviços que trabalham nessa temática", explica Darko Hunter, diretor da Divisão de Localização familiar e Desaparecidos de São Paulo.

Saiba como é a busca de desaparecidos na capital paulista.

    No final do ano de 2009, Maria Régia estava andando pela Sé em um domingo. Ao passar pela Catedral, conheceu a ONG Mães da Sé e a Ivanise Espiridião, fundadora da organização. Maria contou para Ivanise tudo o que estava passando e recebeu informações corretas sobre como deveria procurar Victor. “Ela disse que eu estava fazendo tudo errado, fez meu cadastro na ONG, também me cadastrou no CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), fez uma camiseta e começamos a divulgar mais as fotos do meu filho”, relata.

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Um trabalho de formiguinha - Maria Régia, mãe do Victor Ruffolo
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      As filhas, preocupadas com a saúde da mãe, precisavam fazer com que ela se ocupasse de alguma forma. Então a levaram para fazer uma entrevista de emprego. Maria conseguiu o trabalho que lhe deu forças pra continuar. Permaneceu na empresa até o início da Pandemia, como ela entrava nos grupos de risco, foi uma das primeiras a ser dispensada. Na mesma época, descobriu que estava sendo traída pelo esposo, o que afetou ainda mais sua saúde mental, “fiquei seis meses com depressão”.

     Nesse período, o CICV selecionou 5 mães de desaparecidos para participarem de um programa de auxílio, Maria foi uma delas. O Comitê ofereceu um curso de confeitaria para Maria Régia que descobriu ser uma excelente boleira, além de uma boa quantia para que ela comprasse os primeiros equipamentos. “A confeitaria veio para agregar vontade de vida”, conta Maria sobre sua nova profissão.

            Além da MR. Delícias Gourmet, a confeitaria, os netos também são fonte de força e alegria para Maria. O filho de Nathália, que fez 14 anos em Novembro - mesmo período do desaparecimento de Victor - recebeu o nome de Vinícius em homenagem ao tio. “Quando eu estava grávida, eu queria Vinícius, mas os avós Italianos não deixaram colocar Vinícius, então acabou ficando Victor.” relata Maria. Nathália desejava colocar o nome de Vinícius para homenagear o irmão desaparecido desde que tudo aconteceu.

       Maria também entrou com um processo contra o hospital público em que o filho estava internado. O advogado que a representa no caso é o mesmo para quem trabalhava na época da faculdade, “ele tem me apoiado muito nessa luta”, relata. 

            Nathália também enfrenta alguns traumas desde o desaparecimento do irmão. Como não possui um plano de saúde, o hospital mais próximo para ser tratada é, justamente, o hospital em que Victor foi internado em 2009. “É aterrorizante, ficar lá pensando: será que eu vou sair daqui? será que vai acontecer comigo o mesmo que aconteceu com ele?” Ela também toma cuidados especiais em relação aos filhos: “Meus filhos não vão pra escola sozinhos, não brincam na rua sozinhos. Duas vezes na semana eu saio com eles para um parque, eu acolho os amigos para brincarem em casa, mas eles não saem sozinhos.” comenta.

            Após anos na justiça tentando conseguir respostas e descobrir o culpado, saiu a sentença no ano de 2022.

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Sentença parcial - Maria Régia, mãe do Victor Ruffolo
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            O caso de Maria está em uma fila de Precatórios - requisições de pagamento expedidas pelo Judiciário para cobrar de municípios, estados ou da União, assim como de autarquias e fundações, valores devidos após condenação judicial definitiva - prevista para 2030, para receber um valor por danos morais. 

          Mas, receber um valor por danos morais não era a razão do processo. Ela queria descobrir o que aconteceu com Victor. Quem deixou o filho sair do hospital? Por que as câmeras não estavam funcionando? O que aconteceu com ele? São perguntas que vão demorar ainda mais tempo para serem respondidas.

          Mesmo depois de anos, a esperança de encontrar o filho não morreu no coração de Maria Régia. Ativa nas ONGs de desaparecidos, ela continua divulgando e procurando por Victor. Até encontrá-lo, ela fica com a saudade e a dor de um luto sem tempo de acabar, apoiada pela família e pelos amigos, ela encontra forças para procurar não só pelo Victor, mas também ajudar cada mãe que passa pela mesma dor que ela.

MAMÃE TE AMA MUITO, VOLTA PRA CASA"

MARIA RÉGIA, MÃE DO VICTOR

Se você tem informações sobre o Victor, ligue para os números:

Delegacia de desaparecidos: (11) 3311-3547/ (11) 3311-3548 / (11)3311-3983
Divisão de Localização Familiar e Desaparecidos: (11) 2833-4344/ (11) 97549-9770 (WhatsApp)
ONG Mães da Sé - (11) 3337 3331/ (11) 99826 3991 (WhatsApp)

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